04 outubro 2011

Doação

      "Um estampido. Nem teve tempo de ouví-lo direito. A bala foi mais rápida que o som e alcançou o outro lado da sua cabeça antes que a pressão das ondas sonoras pudessem causar qualquer tipo de sensibilização do tímpano. De um lado estava surdo, do outro estava morto.

      Se ele ainda pudesse manifestar opinião, uma única que fosse, diria que é mentira aquele clichê de que passa um filme da sua vida nesse átimo de tempo entre o saber iminente da morte e a morte propriamente dita. Nem uma micrometragem séria possível, o tempo que uma bala leva entre o tambor do revólver e o osso parietal oposto, quando se tem o cano encostado no couro cabeludo, não chega a um segundo. O máximo que ele pode fazer foi uma fotografia mental.

      Torcendo para que os neurônios que serviram de negativo não tivessem virado churrasco pelo calor do projétil e a humanidade tendo desenvolvido tecnologia para resgatar as últimas informações cerebrais, seria possível ver uma pessoa se olhando no espelho. Provavelmente também seria visível a banheira cheia de água e gelo. Um revolver. Um telefone do lado da banheira. Um pequeno pedaço de papel.

      Não seria difícil para a polícia finalizar a investigação. Suícidio com arma de fogo. Tiro certeiro, calculado, dado por alguém que sabia o que fazia. Ah, o sempre esperado recado de despedida ao mundo. Não teríamos nenhum herói para o jornal da noite.

      Mas os primeiros a chegar seria os médicos, avisados pelo próprio suícida. Para o roteiro dar certo e ele se sentir realizado em algum plano de existência etéreo (para alguns isso é conhecido como 7 palmos de terra) era preciso que a equipe de resgate emergencial não demorasse muito. Sabe como é, mesmo envolto de água gelada o corpo vai se deteriorando aos poucos. O sangue para de circular, os tecidos mais sensíveis ficam podres, algumas coisas enrigecem, outras amolecem. Tudo bem, isso ia acontecer para a maior parte do corpo, mas uma em especial precisava estar apta para uso posterior. Era importante.

      Por outro lado o SAMU não podia chegar muito rápido. Vai que esses malditos conseguem mantê-lo "vivo", mesmo que vegetando sobre uma cama de hospital? Sua existência já havia sido fodida demais para que tivesse que conviver com isso. Alguns motoristas mal educados, desses que buzinam antes do sinal ficar verde para que todos saiam da sua frente, pelo caminha daria conta do ímpeto desse povo de branco.

      O bilhete estava em destaque bem ao lado da banheira para que fosse visto até por um cego no escuro. Como queria evitar burocracia (mortos não gostam de perder tempo com papeis) deixou embaixo do bilhete a própria identidade e não pensem que era para facilitar identificação do defunto. Importante era a mensagem passada por três pequenas palavras: doador de órgãos.

      No bilhete seria possível ler a última vontade desse infeliz. Literalmente. Tanto a parte da última vontade quanto a do infeliz. Escrito com letras miúdas, lía-se:


"Coração pouco usado. Partido, porém funcional. Não entendi como funcionava, não tinha manual.


PS.: Pode ser que ele seja alérgico ao amor. Preferi não arriscar."

2 comentários:

Thamires Figueiredo disse...

Que legal, adorei o post. Muito interessante!

Beijos :*

Jú... disse...

Caraleo... muito FO-DA... foi vc quem escreveu? quem eh o autor?

=***